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Uma das festas mais queridas da noite, Selvagem está de pai solo

Claudia Assef

23/08/2019 11h26

Ao longo de seus oito anos de história, a festa Selvagem virou cenário de muitos encontros, namoros, virou hit, pisou na lama, foi trilha de ricos e famosos, continuou na rua, puxou Carnaval, viajou, lançou discos e, sem exageros, ajudou a mudar o panorama da noite de São Paulo.

Começou mudando a vida de seus criadores, Augusto Olivani, o Trepanado, e Millos Kaiser, dois jornalistas e pesquisadores musicais que se juntaram em 2011 para fazer uma festa despretensiosa e acabaram juntando 200, 400, 800 pessoas em menos de um ano de atividades, muitas vezes debaixo de (muita) chuva.

Não é segredo nenhum que a Selvagem mudou a minha vida e a do Millos. Antes da nossa gênese, em 2011, eu tinha desencanado completamente do sonho de ser DJ; tinha desistido da noite, basicamente. Quando a gente se conheceu, foi o Millos que veio com a ideia de fazer festa despretensiosa no Paribar, centrão de São Paulo, em frente da praça Dom José Gaspar, um cantinho da cidade mais acostumado com os pagodes de sábado à tarde.

A liberdade musical da festa surgiu como uma novidade numa noite que havia se acostumado a ter rótulos precisos ("tech-house", "minimal", "techno" etc). Na Selvagem tocava de tudo e mais um pouco e não foram poucos os hits estranhos que surgiram da cabine da festa.

Millos Kaiser e Trepanado no Carnaval de 2016

Depois de oito anos juntos, a Millos deixou a festa e Trepanado segue firme com o projeto, que agora se desdobra mais tentáculos. Fui tocar numa dessas ramificações domingo passado, na festa Domingo Disco Club, realizada em parceria com a loja Patuá Discos, na Void, em Pinheiros, e senti de novo o frescor das Selvagens dos primeiros anos.

A fim de saber quais os próximos planos dessa festa que agora tem pai solo, troquei uma ideia com Trepanado, que lançou em julho uma coletânea linda com raridades dançantes brasileiras lançadas nos anos 80 e 90. O disco Street Soul Brasil foi lançado pelo selo Hello Sailor Recordings e tem de Afrodite se Quiser a Thaíde & DJ Hum. Leia a seguir o que vem de Selvagem pela frente.

Como tem sido a dinâmica de tocar carreira solo na Selvagem.

Trepanado – Você diz como líder do núcleo de festas ou como DJ? Vou falar dos dois. De um lado, envolve bastante trabalho e muita responsabilidade, especialmente por se tratar de uma festa que tem uma identidade marcante e que é querida do público, e eu quero que isso continue intocado – mas também quero que exista uma evolução, não quero que a experiência seja a mesma, pois é diferente. Por outro lado, como DJ, tem sido um processo criativo muito bom, que passa por uma reconexão com meu lado mais instintivo, o que não deixa de ser algo bem divertido.

Conta um pouco sobre a pesquisa pra fazer a coletânea Street Soul Brasil, imagino que não deve ter sido fácil conseguir as liberações, né?

A bela capa de Street Soul Brasil

Trepanado – Foi menos difícil do que as pessoas costumam achar, mas com certeza não foi fácil. Metade das músicas tem seus direitos atrelados a grandes gravadoras como Warner, Sony e Universal, e muitas vezes isso implica limitações nas licenças – por exemplo, é caro demais fazer a coletânea no vinil e no digital –, mas até que os departamentos das gravadoras trabalharam rápido. O mais difícil do processo todo sempre foi descobrir quem tinha os direitos da obra (explicando rapidinho: pra fazer direito, precisa obter duas licenças: a da gravação e a da obra, são duas coisas diferentes), pois, ao contrário do que pode parecer, quase nunca o artista que lançou por uma gravadora grande tem o direito da música. Então eu tive que participar de forma bem ativa fazendo esse trabalho de detetive durante esse processo de licenciamento  – que, é claro, foi conduzido por um advogado especialista na área. Ao mesmo tempo, tivemos sorte também em negociar diretamente com alguns artistas cruciais pra seleção da Street Soul Brasil, como a Fernanda Abreu e o JC Sampa do Sampa Crew. Lembrando que sem o suporte da Renata do Valle, a cabeça do selo Hello Sailor, a coletânea não teria saído como saiu.
Como você se sente fazendo música e festas no Brasil em que estamos vivendo?

Trepanado – Ultimamente, bem preocupado. Assustado não, pois essa onda conservadora é algo que está no radar já faz uns três anos e não tinha como esperar algo diferente do atual presidente – nem do governador, nem da câmara. Mas cheguei no ponto de torcer pra algo dar certo pois o cenário pra quem produz eventos está muito ruim. Cada vez menos espaços que sirvam de locação pro tipo de festa que eu quero fazer, pouco dinheiro circulando… Desculpem o pragmatismo, eu posso ser bastante idealista na concepção de um line-up, na minha pesquisa musical, no trabalho do selo, que é a Selva Discos, mas não tenho saúde pra fazer festa por fazer. Eu faço porque gosto, porque me dá prazer trabalhar pra que as pessoas se divirtam, que dancem e possam esquecer, por uma noite, o tanto de lixo que temos que combater no dia a dia. Talvez esse seja o meu ato de resistência.
A música, por outro lado, é minha válvula de escape – eu não sou um autor, mas é minha forma de materializar as ideias que eu tenho aqui borbulhando na cabeça. Pode ser um remix, um edit que eu faça de determinada faixa para trazer um toque de exclusividade nos meus DJ sets, mas é uma ação menos política e mais hedonista. Só miro o prazer e não me sinto culpado.

Trepanado usando um de seus looks selvagens na cabine

Você consegue sair sem ser nas noites em que está tocando? Onde vai e o que te atrai numa discotecagem?

Trepanado – Hahaha pergunta bastante pertinente pra quem é pai de um menino de 10 anos e casado. Saio cada vez menos, e nem é porque deixei de prestigiar meus amigos, é mais pra minha sanidade mental. Tenho um emprego fixo, acordo cedo durante a semana, enquanto na paralela cuido da Selvagem, da Selva Discos – o selo que está mais ativo do que nunca –, pesquiso música e me preparo pras apresentações nos fins de semana, sem deixar de passar tempo quase que todo dia com a família, então é muita então é muita coisa pra coordenar e se eu ficar no rolê, já era: esse balanço entre vida pessoal e profissional fica prejudicado e não sou mais jovem.

Porém, contudo, todavia, quando eu saio eu basicamente vou ver meus amigos tocarem. O que mais me atrai hoje é a maturidade em saber ler o momento da festa, em manter a pista empolgada ao mesmo tempo em que se propõe algo diferente. Fazer uma festa acontecer não é um exercício de vaidade, seja a vaidade de agradar a si mesmo tocando só o que quer ou de agradar aos outros tocando só o que eles querem. Enfim, eu sempre vou ser a pessoa que vai pirar naquele momento fora da curva, se ele acontecer, e nas músicas que eu ainda não conheço.

Vocês foram pioneiros em fazer festas na rua/no centro de SP, hoje isso é muito comum. Sente que a Selvagem teve um peso grande nesse avanço?

Trepanado – Se a Selvagem foi alguma coisa nesse sentido, foi catalisadora de um movimento que já existia. Os soundsystems de dub foram pioneiros nessa história e continuam firmes e fortes, com uma injeção incrível de sangue jovem de sistemas liderados por mulheres, por exemplo. Se alguém citar a Selvagem como um ícone deste movimento, ou como influência, vou me sentir imensamente orgulhoso por ter feito parte de algo que tocou fundo nas pessoas. Mas não cabe a mim dizer. Talvez, o grande lance não tenha sido fazer festa na rua, mas fazer na rua, propondo uma mistura única de ritmos com forte sotaque brasileiro – talvez o legado mais importante seja esse.

Selvagem Apresenta: Trepanado All Night Long
Sábado, 24 de agosto, a partir das 22h
Coffeeshop Club
Rua Fradique Coutinho, 1157, Pinheiros
A partir de R$ 30

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Sobre a autora

Claudia Assef é uma das mais respeitadas especialistas em música do país. É publisher do site “Music Non Stop” e ao lado de Monique Dardenne fundou o “Women's Music Event”, plataforma de conteúdo e eventos que visa aumentar o protagonismo da mulher na indústria da música.

Sobre o blog

Um espaço para falar sobre descobertas musicais, novidades, velharias revisitadas, tendências e o que está rolando na música urbana contemporânea, seja na noite ou nas plataformas de streaming mais próximas de você.

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