Se a cultura clubber existe sólida no Brasil é porque existiu Mauro Borges
Claudia Assef
05/09/2018 10h37
Não é fácil escrever sobre a morte, de ninguém. Quando você se depara com uma tela em branco e a missão de escrever sobre um amigo querido que se foi cedo demais, daí a coisa passa pra um outro patamar. Na última sexta (31), perdemos Mauro Borges, DJ, dançarino, festeiro e o maior fã da Madonna que eu já conheci. E, ouso dizer, um dos profissionais que mais fizeram para popularizar a música eletrônica no Brasil.
Conheci o Mauro quando era uma pré-adolescente que estava muito a fim de encontrar as músicas que ouvia em programas na TV como o Realce Baby. Por um desses misteriosos encontros que o universo arma pra gente, Mauro era vendedor da Bossa Nova Discos, um portal para as novidades musicais que chegavam da Europa cravado no Centro de São Paulo. Pra mim, que comprava discos em lojinhas de supermercados e shoppings, conhecer a Bossa Nova foi tipo encontrar água no Saara, especialmente porque havia vendedores como o Mauro.
Maurinho, jornalista e nerd musical, acabou estreando como DJ no Nation
Nosso segundo encontro na vida foi em outro portal mágico da minha adolescência, o Nation. O clube, que preparou São Paulo para a cultura clubber, foi um dos marcos da dance music no Brasil. Em 1988, em pleno "verão do amor" na Europa, quando o ecstasy emergiu dos pequenos guetos para estampar capas de revista, já não parecia mais tão bacana dançar música gótica e rock industrial em templos do dark, como o Madame Satã, no Bixiga, e o Ácido Plástico, em Santana.
No subsolo de uma galeria de lojas numa das ruas mais movimentadas de São Paulo, o DJ Renato Lopes mostrava novidades até então inatingíveis para a nação dançante do país. Lopes havia estreado nas pick-ups dois anos antes, como DJ do Madame Satã, ao lado de Mau Mau. No Nation (1988-1992), ele tinha como parceiro de cabine Mauro Borges. Recém-chegado da Europa, Borges tinha informações frescas sobre como andava a cena de clubes no velho continente. Ainda por cima, trabalhava na Bossa Nova, "a" loja para quem procurava discos e informação sobre música underground. Borges era jornalista e nunca havia trabalhado como DJ, mas, com o background musical que tinha, foi convidado pelos donos do Nation, Paulo Renato e Eloy W., a dividir o som da casa com Lopes.
Fã incondicional de Madonna, a pista de Borges sacudia ao som da rainha e de outros ícones do pop dançante, como Prince, Depeche Mode e New Order, permeados por um ou outro hit da disco dos anos 70, como Frenéticas. Quente também era a performance do DJ: alto e forte, Borges já atraía olhares para a cabine naturalmente. Ele tocava invariavelmente sem camisa e fazia coreografias incríveis com as mãos, à la Vogue. A pista de Renato Lopes era a aula, enquanto a de Mauro Borges era o recreio. O Mauro do Nation era um ídolo pra mim.
Daí que em 1989, ele virou um ídolo nacional, cantando e dançando na TV o hit Que Fim Levou Robin?, de sua banda homônima produzida por Dudu Marote e lançada pela gravadora Warner. A música estourou no Brasil inteiro e levou a banda, formada inicialmente por Mauro, pelo DJ Renato Lopes e pelos clubbers Bebete Indarte e Eloy W., e mais tarde por Ultra Claudia (todos parte da família Nation), a frequentar programas de TV, como o do Gugu.
Apesar de não ter sido sucesso de vendas – as pessoas nem sabiam o que era música eletrônica direito – o Que Fim Levou Robin? estourou na TV, graças também ao seu visual exótico para a época, às dancinhas e ao carisma de Mauro. Assim, eles chegaram a sair em turnê nacional, tocaram de Porto Alegre a Belém do Pará, onde se apresentaram para 10 mil pessoas.
Daí veio o Massivo, talvez o clube mais famoso e lembrado do Brasil. Com Mauro nas pick-ups, o Massivo virou hit na cidade, com longas filas na porta quase todas as noites. De pára-quedistas a colunáveis em geral, todo mundo queria ver o que rolava lá dentro. Nessa época eu já trabalhava e amava me jogar no Massivo, onde eu curtia, especialmente, a montação meio Deee-lite que fazia antes de ir pra boate.
O burburinho tinha muito a ver com uma combinação de libertação sexual e musical. A primeira era mais óbvia: ali nasceu a "almôndega", dancinha que envolvia um grupo de pessoas grudadas umas nas outras. O ritual acontecia invariavelmente nas "gaiolas", pequenas jaulas suspensas no segundo andar do clube.
A segunda libertação veio com a música. Em pleno momento de ascensão da música eletrônica na cidade, Mauro resolveu investir numa mistura de house americano, o garage, aliado a um revival da disco music. Apostou também no resgate de ícones da década de 70, como a cantora Gretchen. Acertou em cheio na trilha sonora para compor a aura "exótica" que aquele novo lugar pedia.
O Massivo se transformou em templo do hedonismo em São Paulo. Junto com a notícia do clube, espalharam-se suas gírias (luxo, glamour, clubber, montação…), sua moda e suas personagens mais reluzentes, as drag queens. Reza a lenda que foi o sucesso do Massivo que levou Gloria Perez a incluir a personagem Sarita, interpretada pelo ator Floriano Peixoto, na novela Explode Coração, em 1995.
A famosa gaiola do Massivo
Em novembro de 96, o Massivo fechou as portas. Mauro Borges foi montar a Disco Fever, clube exclusivamente dedicado ao revival da música dos anos 70. Hedonista de carteirinha, Borges entrou para a história como o primeiro DJ brasileiro (e talvez do mundo…) a posar nu para uma revista, a G Magazine.
Esse Mauro dos anos 80 e 90 foi um ídolo pra mim, ainda que presente e próximo, não era meu amigo. Foi com a Discology, festa que fiz por uns oito anos com Camilo Rocha, que ele se aproximou de vez e virou nosso "gogo boy oficial". Mauro não faltava a uma festa, era o primeiro a chegar, dançava TODAS as músicas, elogiava, ria, se divertia, bebia cerveja, causava, abraçava todo mundo suado, e ia embora pra casa, feliz. Foi ali que ganhei um amigo, um parceiro muito querido que me abraçava forte e me chamava de madrinha.
Mauro tocando e cantando numa remota Discology no Lov.e
Sua importância na música eletrônica nacional, talvez nem ele tenha tido a dimensão. Mas eu sei. Foi imensa. E quero que todo mundo saiba também. Sem o Mauro não estaríamos vivendo o que vivemos hoje. Apesar da tristeza por sua passagem tão prematura, é do Mauro com aquela enorme tatuagem da Madonna no Braço que eu vou me lembrar. É do Mauro falando "arrasa, bee" que eu vou lembrar. É do Mauro grande enciclopédia da música que eu vou me lembrar. Só queria mais um abraço suado dele, na verdade. Mas sei que ele está bem e isso me conforta <3
TODO MUNDO É DJ COM MAURO BORGES
Sobre a autora
Claudia Assef é uma das mais respeitadas especialistas em música do país. É publisher do site “Music Non Stop” e ao lado de Monique Dardenne fundou o “Women's Music Event”, plataforma de conteúdo e eventos que visa aumentar o protagonismo da mulher na indústria da música.
Sobre o blog
Um espaço para falar sobre descobertas musicais, novidades, velharias revisitadas, tendências e o que está rolando na música urbana contemporânea, seja na noite ou nas plataformas de streaming mais próximas de você.